quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Todo e qualquer momento revolucionário que tenho na vida acontece nos lugares menos poéticos

Texto originalmente escrito para Immagine
Comecei 2017 pensando¹: “Poxa, quais livros que o pessoal irá gostar de ver aqui? Qual estilo amam mais? Será que estão curtindo? Esta contribuição os faz vir até aqui só para conferir a coluna? Quantos textos preciso produzir para ficar tranquila alguns dias? Será que vou passar todos os feriados até abril trabalhando de novo? Qual é o horário da minha tutoria mesmo? Preciso terminar aquele curso do terceiro setor… Putz, trinquei meu relógio de pulso, vou ter que acordar amanhã cedo e ir no centro. Affs”.
E assim terminei minha última semana de janeiro, julgo, última semana de férias da Immagine e a primeira semana no meu trabalho formal. Depois de vários dias fora e de cabeça para a lua parece que perdemos a conjuntura e o ritmo.
Olhar o calendário já me proporcionava algum tipo de gastura. Fixada nas datas e prazos, tentava visualizar o que será da minha vida uma vez que calculo tudo em horas. Horas que preciso para isso, horas que gastarei para fazer aquilo e, como encaixarei tantos compromissos, desejos e sonhos em míseras dezesseis horas diárias².
E assim, em meio a uma crise do que fazer primeiro que cheguei ao nosso livro desta semana, um livro repleto de crises:
Tá todo mundo mal – O livro das crises
Autor: Julia Tolezano da Veiga Faria
Editora: Companhia das letras
Páginas: 196
Preço: R$16 – 30,00

Julia Tolezano da Veiga Faria nasceu em 1991, em Niterói, Rio de Janeiro. Fez jornalismo na PUC-RJ e alguns outros cursos brevemente com a desculpa de que “ser criativa e gostar de escrever eram boas justificativas para fazer mais um curso do qual ‘ela’ não gostava”. Apresento a vocês, Jout Jout, prazer.
Algumas ressalvas precisam ser colocadas sobre esta leitura:
  1. Para quem é chegado em crônicas.
  2. Aos que estão procurando de uma leitura leve. Muito. Leve.
  3. Ou aqueles que desejam iniciar 2017 com estilos literários novos.
O livro ‘Tá todo mundo mal’ é mais um livro de crônicas como tantos outros que existem por aí. Escrever que ele possui algo grande e avassalador, diferente de todos os outros que li seria uma grande mentira. Quero ser sincera com vocês. O que me fez traze-lo hoje aqui foi meu simples gosto pessoal. Eu gostei dele. E ponto.
Acredito que a leveza de como escreveu sobre alguns assuntos ‘meio tabus’ tornou a leitura engraçada ao mesmo tempo que te mostra o quanto temos padrões pré estabelecidos nas pessoas e suas decisões.
“… Eis que chegamos no sensível ponto que afeta toda pessoa que gosta de alguém do mesmo gênero que é: a lenda de que essas pessoas se atiram em qualquer ser do mesmo sexo para fazer um sexo gostoso no meio da rua, sendo esta vitima gay ou não. Uma lenda, claro…  Ela mostra toda sua revolta com a suposição de que ela iria se interessar por qualquer mulher que cruzasse seu caminho. No final de seu discurso, fala: – Você acha que eu vou olhar para a sua mãe e ficar (insira aqui uma simulação de siririca bem enfática). Nós rimos por duas horas. ”
Como todos os livros de crônicas, as histórias escritas por Jout Jout são sobre algum momento de sua vida desde adolescente até a fase adulta. O comum entre todas elas é o que se espera de um livro neste formato: o aprendizado. E são estes aprendizados e total sinceridade sobre os fatos e sentimentos que me fez criar um amorzinho por esta obra. E quem sabe, desejar que mais adiante ela continue a escrever.

O título de todas elas começam com “a crise”. E assim temos 46 crises, das mais diversas tolas problematizadas até a questões um tanto sérias-‘inhas’ – inhas para deixar claro que não será seu livro psicólogo – o livro mantém a leveza em meio a passagens que te tira sorrisos de canto de boca até aquele riso que sai meio que pelo nariz.
Temos ‘a crise de quando fui cadeira’, ‘a crise da ausência de talentos’, ‘a crise do agora não dá’ e ‘a crise de não saber lidar com a morte’ que é tão direto como deve ser: morte é foda. Pensando em como eu poderia escrever sobre ‘a crise da liberdade tardia’ chego à conclusão que todas nós – mulheres – estamos presas eternamente em um ciclo vicioso de nos esconder. O prazer de uma libertação tardia quanto ao nosso corpo é revelador.
“… Pensei em todas as vezes que peguei um casaco, uma manta, um cachecol ou qualquer pano que estivesse à mão para poupar o mundo das minhas celulites… Pensei em como passei pelo menos dez anos repetindo este movimento… É engraçado como chegamos a conclusões muito diferentes quando questionamos um costume que já está arraigado em nossas entranhas. ”
Ou ‘a crise de ausência de talentos’. Quem nunca se viu rodeadas de amigos cheios de vocações extraordinárias – ao menos para você – e se sentiu o cocô do cavalo do figurante? É… Uma comparação amigável do que você sabe fazer versus o que seus amigos sabem fazer já é um motivo de crise. 
“A questão é que, enquanto todo mundo parecia ter uma verdadeira vocação, ou pelo menos alguma facilidade para alguma coisa, eu me via em frente a um computador assistindo séries sem fim para esquecer o fato de que eu não tinha vocações”.
E assim, o livro Tá todo mundo mal vai te apresentando as neuras de uma pessoa em seu cotidiano tirando grandes sacadas delas, ou não tão grandes assim, fazendo na mesma proporção refletir sobre detalhes miúdos que de alguma forma te moldaram ao que és hoje.


Com menos de 200 páginas, a leitura é rápida, gostosa e na maioria das vezes engraçada. Você não encontrará aqui crônicas profundas e cheias de incógnitas. É para dias leves. É para sair do cotidiano. Mudar um pouco o rumo das coisas.
Obs.:
¹ Quando se está de férias no mês de janeiro, o ano só começa após o término da mesma. E o relógio foi para cirurgia.
² Nem vem questionar minhas oito horas de sono.
³ Entrei em crise sobre a minha profissão enquanto devorava o livro. No fim, não passou de um: será que é isso mesmo que eu quero? O bom é que a resposta foi afirmativa e tudo voltou a ficar ok. Como escreveu Jout Jout “talvez – e Deus queira que sim – esse tabu só esteja na minha cabeça”.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

A mí, las alas me sobram

Você provavelmente já deve ter ouvido falar dela, passado por algum de seus poemas célebres, visto seu rosto estampado em camisetas, xícaras e poster. A melhor parte é ser surpreendido por sua monosombrancelha quando buscam seu nome para saciar a curiosidade. Quem é esta grande mulher? A resenha de hoje é sobre um dos meus xodós, uma edição especial para lá de impactante de uma das mais importantes pintoras mexicanas do século XX.
O livro apresentado hoje está mais para uma grande reunião de sentimentos e arte do que uma bibliografia. Na verdade, ele não é em nada uma bibliografia e por isto, ao descrever para vocês o que encontrarão nele, darei uma palhinha sobre sua vida e arte.
A obra de hoje é comovente e te levará aos mais íntimos dos sentimentos vividos por Frida em seus últimos dez anos de vida. Um livro para ser sentido em detalhes e contemplado em suas cores.
O  diário de Frida Kahlo – Um autorretrato íntimo (por Frida Kahlo)


Autor: Frida Kahlo
Tradução: Mário Pontes
Editora: José Olympio
Páginas: 280
Preço: R$87,00 – 125,00
Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón, ou mais conhecida como Krida Kahlo, nasceu em 06 de julho de 1907 na cidade de Coyoacán no México. Frida é relatada como uma das mais importantes pintoras mexicanas e sua arte é conhecida mundialmente. Colocada como uma pintora surrealista – do qual ela negou enquanto viva – suas obras carregam detalhes de sua vida e dor e por este motivo ela não considerava este seu estilo, pois ela não pintava fantasias e sim sua realidade.
“Eu nunca pinto sonhos ou pesadelos. Pinto a minha própria realidade.”
Este ano Frida completaria 108 anos, esta mulher que grandemente inspira todos nós. Eu como grande amante e consumista não pude perder a oportunidade de adquirir este livro que ganhou uma reedição de luxo em 2013, que adquiri com grande euforia no mesmo ano – e em uma promoção devido ao seu preço salgado no lançamento. Originalmente lançado em 1994 e por muitos anos fora do catalogo, a editora aqueceu nossos corações com uma nova edição para lá de especial a três anos atrás.
Em capa dura e de cores fortes e vivas, a obra traz a reprodução fiel das páginas do diário escritas entre 1944 e 1954. Nas páginas, anotações de suas angustias quanto a vida e de sua condição enferma. Traz passagens políticas e sua relação conturbada com “o grande amor de sua vida”. Na verdade,
declarações de seu amor por Diego Rivera são comuns em seu diário.



Imagem presente no livro


Imagem presente no livro
Diego e Frida casaram em 1929 e em 1939 divorciaram-se. Mesmo assim, ambos nunca cortaram laços e mantiveram uma relação até Frida perecer. Após seu divórcio, sua vida foi marcada pelo consumo exagerado de bebidas alcoólicas. Para si, era uma forma de aliviar suas dores físicas e pessoais.
“Bebi porque queria afogar minhas mágoas, mas agora as coisas malditas aprenderam a nadar”.
Sua arte foi fortemente influenciada por suas enfermidades que lhe causavam dores contínuas. Seus problemas de saúde iniciaram-se ainda quando pequena ao contrair poliomielite, deixando como consequência seu pé esquerdo lesionado. Já aos 18 anos sofreu um grave acidente e sua vida nunca mais seria a mesma. Frida teve múltiplas fraturas e passaria ao longo de sua vida por 35 cirurgias, sendo obrigada a ficar acamada por longos períodos e a usar a corpetes para a coluna inteiramente de ferro. Para passar o tempo começou a pintar retratando seus dias, sentimentos e principalmente suas agonias.
Seu amor por Diego é escrito de várias formas: ora amor que transborda, ora tristeza com suas infidelidades e principalmente pela sua incapacidade de gerar um filho devido aos problemas de saúde. No decorrer de sua via, ela sofreu três abortos.
“A pintura tem ocupado minha vida. Perdi três filhos e uma série de coisas que poderiam ter preenchido a minha vida horrível. A pintura substituiu tudo. Eu acho que não há nada melhor do que trabalhar. “

Frida Kahlo
Frida faleceu em 13 de julho de 1954, aos 47 anos, após uma grave pneumonia que desencadeou uma embolia pulmonar. Muitos acreditam que ela se suicidou, devido a última passagem escrita em seu diário antes de morrer. “Espero alegre a minha partida – e espero não retornar nunca mais”. Passagem que você encontra na última página do livro em questão.
Após a apresentação fidedigna dos 10 últimos anos de sua vida, o livro tem em seguida todas as páginas novamente em preto e branco e em miniaturas, tendo logo abaixo a tradução de suas divagações e nomes de seus desenhos. Por estarem escritos ao que parece em sua grande maioria tinta, muitas de suas passagens não são legíveis, dificultando ainda mais o fato de estar em espanhol – não, não é tão simples assim entender.
Para finalizar o livro, é contada sua vida em uma linha do tempo cronológica. Dando ao leitor o toque final que precisava para compreender como um todo seu desabafo e a arte presente em seu diário. É com certeza uma obra que nos enriquece culturalmente falando, além de embelezar sua estante.
Esta edição de luxo é para os amantes de Frida Kahlo, aos que se inspiram em sua força, arte e vida. Uma mulher que amava sua cultura e vestia-se de forma única e além de seu tempo. E não só apenas aos que a idolatram, mas, também para aqueles que sempre estão abertos para novas experiências literárias.

Capa da Vogue Mexicana em 2012
Obs.:
  1. O Natal já passou, porém presentear alguém com uma edição de luxo é um presentão mesmo que atrasado.
  2. Em 2012, a Vogue México estampou Frida Kahlo em sua capa. Mesmo após 60 anos de sua morte, ela é referência na criação de suas roupas e de estilo. Acabei não citando muito este tema, mas caso tenho curiosidade, uma palhinha: ela estava muito afrente de seu tempo, suas roupas traziam o orgulho de sua cultura e por muitas vezes usava peças sem se importar com o gênero delas.
  3. Diego Rivera impôs 15 anos de sigilo para os pertencer do casal. Após sua morte, a colecionadora de arte Dolores Olmedo se recusou a expor às peças mesmo passados os 15 anos pedido por Rivera. Recusa estendida até para o Museu Frida Kahlo. Somente após a morte da colecionadora, pertences, objetos e roupas entraram em exposição. Peças nunca vista antes por qualquer público.
  4. Os quadros de Frida sempre bateram recordes em leilões.
  5. A exposição Frida Kahlo passou pelo Brasil em 2014.
Texto originalmente escrito para Immagine

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

O mundo é apenas um lugar estranho

Um dos livros que mais me tocou em 2016 é um livro tímido, pouco conhecido em comparação com outros nomes que retratam o mesmo período e, para mim, muito mais ricos em detalhes daquilo que não podemos esquecer.
O diário de Helga – O relato de uma menina sobre a vida em um campo de concentração


Autor: Helga Weiss
Editora: Intrínseca
Tradução: George Schlesinger
Páginas: 256
Gênero: Não Ficção
Preço: R$25 – 40,00

Helga Weiss nasceu no ano de 1929 em Praga. Filha de um bancário e de uma costureira, começou a escrever em seu diário a vida que começava a ser assombrada pela ocupação nazista. Um dos primeiros atos foi a perda de emprego de seu pai, depois a identificação e segregação, sua expulsão da escola e por último o transporte de sua família para Terezin.
Apesar do diário ser iniciado quando criança (8 anos) e ao fim da Segunda Guerra Mundial ela ser uma adolescente (15 anos), você não encontra traços tão infantis nas passagens como no Diário de Anne Franke. Lançado em 2013, o diário foi revisado pela própria Helga com o intuito de manter a autenticidade e a forma da narrativa.
Helga Weiss
Helga transparece sua angustia em ver seus amigos e parentes, um por um, entrarem no chamado transporte. Em alguns momentos deseja que sua família seja convocada logo para que possa reencontrar aqueles que ama.  Trechos que quando li me apertava o coração, mal ela sabia o que os esperavam.
Contendo informações complementares (encontradas no sumário ao fim do livro), os termos em alemão, lugares e apelidos são explicados. Tradições judaicas e o processo interno “das burocracias” são claramente apresentados ao leitor. Das 15 mil crianças que passaram por Terezin, apenas 100 das transportadas para Auschwitz sobreviveram. Helga, é de fato uma sobrevivente.
O que eu não sabia sobre o pós-guerra foi a forma que mundo lidou com o que acharam nos campos de concentração. Relatado na entrevista – exposta após o diário – Helga conta como foram os anos subsequentes ao Holocausto. As nações simplesmente fecharam os olhos para aquele horror. Só após muitos anos reconheceram a proporção do ódio levantado contra os judeus e demais perseguidos.
“[…] Muitos – não, certamente todos – estão chorando em silêncio, mas nós não demonstramos nossas emoções. Para que dar esse prazer aos alemães? Jamais! Temos força para nos controlar. Ou deveríamos nos envergonhar da nossa aparência? Das estrelas? Dos números? Não, não é culpa nossa, alguém se envergonhará por isto. O mundo é apenas um lugar estranho.” Pág. 63
As privações de sono, alimentos, roupas e o trabalho excessivo está exposto. Quem pode viver com 300 gramas de pão a cada dois, três dias? Eram forçados a ficarem de 2 a 5 horas em pé ora no sol escaldante, ora nos horários em que o inverno mais castigava para contagem dos grupos e identificar fugitivos. Conferência que não duraria normalmente nem 20 minutos.
Helga conta em seu diário as incertezas que viveram a cada dia, tanto sobre o fim da guerra quanto aos boatos de grandes fornos e câmaras de gás. Durante anos eles não sabiam o que lhes aconteceriam no dia do amanhã e a cada transporte, Helga escrevia frases transparecendo que não acreditava que “desta vez sobreviveria”.
O relato de uma criança que vê fileiras de pessoas sendo levadas para lugares do campo de concentração do qual nunca retornam – apenas uma fumaça ao fundo – só não te choca mais porque, de fato, Helga não entendia o que estava acontecendo e isto você percebe muito bem conforme a leitura se desenrola.

Crianças polonesas que Helga viu quando estava em Terezin. De lá foram levadas para Auschwitz e mortas na câmara de gás
Esta é mais uma leitura que te enriquece culturalmente. Conhecer o sentimento e as experiências de pessoas que vivenciaram este período para mim, como ser humano. Há uma passagem em que Helga vê seu reflexo e não se reconhece. Ossos do rosto e do corpo tão escancarados devido a sua magreza que não se vê como uma pessoa, é uma sombra muito distante de um ser humano.
“[…] o que essas… pessoas?… passaram? Sim, já foram pessoas um dia. Saudáveis, fortes, com vontade e pensamentos próprios, com sentimentos, interesses e amor. Amor pela vida, pelas coisas boas, pela beleza, com fé num amanhã melhor. O que resta são fantasmas, corpos, esqueletos sem altas.” Pág. 189
Agora, se você procura uma leitura sobre o holocausto que aborde cronologicamente fatos históricos e que contenha riqueza de detalhes sobre o período, este livro não é para você. Neste livro você irá encontrar a trajetória de uma família em Terezin e ao fim, de uma mãe e sua filha que fazem de tudo para sobreviver a Auschwitz, Freiberg e por último a marcha da morte de 16 dias para o campo de Mauthausen.
Nesta edição que apresento a vocês encontrarão ainda fotos da família, desenhos de Helga e documentos da época. Helga Weiss e sua família foram levados em 4 de dezembro 1941. Ela e sua mãe foram libertadas em 5 de maio de 1945.
Helga atualmente mora em Praga e no mesmo apartamento que sua família morava. Hoje ela está com 87 anos e é reconhecida mundialmente por sua arte e história de vida.
Instagram: @cbredlich
Texto originalmente escrito para Immagine